O ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), citou princípios constitucionais e legais de proteção à família e de fidelidade recíproca dos cônjuges para defender restrições ao reconhecimento da união poliafetiva no Direito brasileiro. Noronha participou nesta quinta-feira (27) de audiência virtual da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara para debater o projeto de lei (PL 4302/16) que proíbe os cartórios de registrarem a união estável de mais de dois conviventes.
Defensores da proposta alegam que o chamado poliamor estimula a poligamia e
seria um “atentado contra a família tradicional brasileira”. Já os contrários
temem o impacto da medida para o reconhecimento de direitos previdenciários e
de sucessão, entre outros. Ao opinar favoravelmente à proposta, João Otávio de
Noronha afirmou que o texto não prejudica ninguém porque a atual legislação já
não reconhece a união poliafetiva.
“Autonomia privada é rasgar a Constituição, que tem um capítulo de proteção à família. Desvendar relacionamentos que historicamente foram censurados pela cultura de um povo não me parece correto. A iniciativa do Congresso Nacional é de dizer com clareza: saibam que vão viver o poliamor, mas não terão a proteção do Estado”, observou.
Amante e dependente
Em 2015, Noronha concedeu pensão alimentícia a uma mulher que havia sido amante
e dependente financeiramente do parceiro por várias décadas. Na ocasião, ela
estava com cerca de 70 anos de idade e não tinha outra forma de sustento. O
ministro do STJ classificou o caso de “excepcional”.
“A minha decisão foi uma exceção da exceção da exceção porque alguém muito esperto conviveu com uma jovem a vida inteira e, quando essa mulher envelheceu, ela é abruptamente abandonada. Então, ali, ela merecia uma proteção especial e eu me baseei no princípio da dignidade humana. Foi muito mais uma sanção para quem se valeu disso do que o reconhecimento de direito para ela”, afirmou.
Poligamia
João Otávio de Noronha e outros palestrantes acrescentaram que o Brasil é um
Estado laico, mas a maioria dos destinatários das leis é cristã e defende a
monogamia. Também disseram que, em países asiáticos e africanos que adotam a
poligamia, as mulheres são as mais vulneráveis e subjugadas na relação.
A presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFS), Regina Tavares da Silva, argumentou que, ao admitir a união estável entre homoafetivos, o Supremo Tribunal Federal (STF) não alargou esse reconhecimento para a poligamia. Ela classificou como “casos isolados” os dois registros de poliamor feitos no Brasil até agora: um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo.
O autor do projeto de lei, deputado Vinicius Carvalho (Republicanos-SP), disse que a intenção é exatamente acabar com as “lacunas legais” que têm permitido esse tipo de registro cartorial.
“Aqueles que querem conviver entre duas e mais pessoas no mesmo lar têm todo o direito, mas não posso aquiescer que essa decisão passe a fazer parte do ordenamento jurídico pelo costume”, disse.
Banalização
O relator da proposta na Comissão de Seguridade e Saúde, deputado Alan Rick
(DEM-AC), já havia apresentado parecer favorável ao texto, mas voltou a
analisá-lo devido a outras propostas que passaram a tramitar em conjunto. Na
audiência, Rick afirmou que sua intenção é evitar a “banalização do instituto
da união estável”.
Para Maria Berenice Dias, proposta representa retrocesso na legislação
O texto recebeu muitas críticas do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFAM), que o avalia como retrocesso nos quase 70 anos de luta pelo
reconhecimento jurídico de todos os tipos de família. A vice-presidente do
instituto, Maria Berenice Dias, afirma que a proposta é uma “tentativa inócua”
de condenar o poliamor à invisibilidade e vai acabar gerando injustiças nas
relações.
“A Constituição viu o afeto e trouxe o afeto para dentro da tutela jurídica do Estado. Então, onde estão presentes essas características, temos sim entidade familiar: formada por duas pessoas (homem e mulher), duas pessoas do mesmo sexo, duas famílias eventualmente simultâneas. Isso também tem que gerar consequências jurídicas”, observou.
O IBDFAM acrescenta que o projeto de lei é “excessiva intervenção na vida privada do cidadão e submissão à moral religiosa”.
Direitos
Juiz do Tribunal de Justiça da Bahia, Pablo Gagliano alertou que, em caso de
aprovação da proposta, não seriam permitidas nem mesmo decisões excepcionais,
como a da pensão alimentícia para amante aprovada no STJ. A deputada Vivi Reis
(Psol-PA) disse que a mobilização contra a proposta não é para se instalar um
“Estado poligâmico no Brasil”, mas para garantir direitos a todas as famílias.
Organizador do debate, o deputado Alexandre Padilha (PT-SP) pediu mais
discussão em torno do tema.
“Minha dúvida é quanto ao impacto que isso (o projeto de lei) vai ter para o conjunto das decisões judiciais relacionadas a direitos e garantia da dignidade humana para as pessoas que constituem variadas relações afetivas”, disse.
Em princípio, a proposta que proíbe os cartórios de reconhecerem a união poliafetiva terá tramitação apenas na Comissão de Seguridade Social e na de Constituição e Justiça, sem necessidade de votação no Plenário da Câmara.
Fonte: Midiamax